
Análise Sobre a Jurisprudência do Colendo TJDFT a Respeito da (In)Existência do Direito à Proteção Possessória dos Moradores de Terras Públicas no DF
(por Leandro Weder da Silva Marra)
Fundamentado juridicamente, porém com o objetivo de ser acessível, o presente artigo não intenta pôr uma pedra sobre o assunto, mas, sim, instigar o debate jurídico – quiça político e social – sobre o tema.
Trataremos da classificação jurídica dada pelo TJDFT ao morador de terra pública no DF, bem como da (im) possibilidade do manejo de ações possessórias para proteger a referida moradia contra atos de outros particulares ou mesmo do Estado.
Detenção de imóvel público
A situação imobiliária do Distrito Federal (DF) é bastante conturbada, principalmente se se considerar as regiões administrativas mais carentes, a saber, as denominadas “cidades satélites”.
Na maioria dessas “satélites”, a compra e a venda de imóveis ainda é feita por intermédio da famigerada “cessão de direitos” (instrumento particular). E isso porque, em apertada síntese, boa parte dos terrenos negociados se encontra em terra pública.
Ou seja, por óbvio, o particular que vende/compra não é – na acepção técnico-jurídica da palavra – proprietário da terra pública vendida/comprada. Logo, por exemplo, não possui a escritura do imóvel.
Então o que lhe resta para comprovar o direito sobre o bem? Ora – dentre outros documentos –, a “cessão de direitos”.
Todavia, a “cessão de direitos” não tem o condão de transferir propriedade, haja vista disposição expressa do artigo 1.245, caput, do Código Civil, qual seja: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.
Assim, com segurança, podemos afirmar que a “cessão direitos” não confere a particular propriedade sobre terra pública. E ponto.
Pior: segundo jurisprudência consolidada aqui no DF, quem mora em casa construída em terra pública sequer tem direito à posse do bem, pois não passa de mero detentor do terreno (artigo 1.198 do Código Civil), por ato de liberalidade estatal. Nesse sentido, recente julgamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT):
[…] REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL PÚBLICO. […] Todavia, tal direito não pode ser oponível ao Poder Público, haja vista que a terra pública não é passível de posse e a parte exerce, tão somente, detenção sobre o bem ocupado."[…] (Acórdão n.967922, 20110111507624APC, Relator: JOÃO EGMONT 2ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 21/09/2016, Publicado no DJE: 03/10/2016. Pág.: 157/188)
Assim, em uma análise rápida, poderíamos concluir que os detentores de terras públicas no DF não têm direito à proteção possessória (artigos 554 e seguintes do Novo Código de Processo Civil). Mas será?
(Im)Possibilidade de Proteção à Moradia em Terra Pública
Particular vs. Particular
Não sejamos afoitos: ainda que se trate de terra pública, é possível o manejo de ações possessórias entre particulares. Vejamos outro trecho do retromencionado acórdão do TJDFT:
[...] REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL PÚBLICO. […] 2.1. Jurisprudência:"É cabível a proteção possessória de área pública quando o litígio for entre particulares. […]” (Acórdão n.967922, 20110111507624APC, Relator: JOÃO EGMONT 2ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 21/09/2016, Publicado no DJE: 03/10/2016. Pág.: 157/188)
Ou seja, segundo a criativa jurisprudência do TJDFT, contra outro particular, o mero detentor de terra pública tem direito à proteção possessória.
Logo, por exemplo, em caso esbulho cometido por outro particular, o morador da terra pública poderá ajuizar ação de reintegração (artigo 560 e seguintes do Novo CPC), a fim de proteger a própria posse sobre o imóvel.
Apenas de passagem, importa dizer que, embora com outros fundamentos, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ) também admite, mesmo nos casos de terras públicas, o manejo de ações possessórias entre particulares. Vejamos:
Informativo nº 0579
Período: 17 de março a 1º de abril de 2016.
Terceira Turma
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AJUIZAMENTO DE AÇÃO POSSESSÓRIA POR INVASOR DE TERRA PÚBLICA CONTRA OUTROS PARTICULARES. É cabível o ajuizamento de ações possessórias por parte de invasor de terra pública contra outros particulares. […] Portanto, os interditos possessórios são adequados à discussão da melhor posse entre particulares, ainda que ela esteja relacionada a terras públicas. REsp 1.484.304-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/3/2016, DJe 15/3/2016.
Mas e quando a ameça vem do próprio Estado (por exemplo, da AGEFIS - Agência de Fiscalização do Distrito Federal)? Aí a situação muda um pouco.
Particular vs. Estado
Conforme jurisprudência consolidada do TJDFT, particular detentor de terra pública não tem direito de ajuizar ação possessória contra o Estado. Vejamos julgamento recente sobre a matéria:
PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE. SETOR HABITACIONAL PÔR DO SOL. TERRA PÚBLICA. OCUPAÇÃO IRREGULAR. POSSE NÃO CONFIGURADA. MERA DETENÇÃO. AÇÃO POSSESSÓRIA EM DESFAVOR DO ESTADO. IMPOSSIBILIDADE. EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. AUSÊNCIA DE INTERESSE-ADEQUAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1. A ocupação de terras públicas não configura posse legítima, na medida em que é oriunda de uma tolerância estatal, configurando mera detenção, o que não autoriza sua proteção contra atos de fiscalização do Estado por meio de interdito proibitório, ante a falta de adequação. 2. A ação possessória intentada por particular em face do Estado não tem viabilidade técnico-jurídica, o que justifica a prolação de sentença terminativa por falta de interesse-adequação. 3. Apelação conhecida, mas não provida. Unânime. (Acórdão n.895858, 20150110314173APC, Relator: FÁTIMA RAFAEL 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 23/09/2015, Publicado no DJE: 28/09/2015. Pág.: 196)
No entanto, ante nítida ameaça de injusta desocupação/demolição a ser levada a efeito, por exemplo, pela AGEFIS, o TJDFT tem admitido o manejo de ações de conhecimento cumuladas com pedido de tutela provisória, mas apenas para proteger o direito do morador de área passível de regularização.
Nessas áreas, o TJDFT já impediu demolições, com fundamento no direito à moradia (artigo 6º da CRFB) e na função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, da CRFB), bem como nos princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CRFB). Vejamos:
[…] DEMOLIÇÃO DE OBRA. SUSPENSÃO. IMÓVEL PASSÍVEL DE REGULARIZAÇÃO. 1. Tratando-se de área passível de regularização, cabível a antecipação de tutela para que a Administração Pública se abstenha demolir o imóvel da parte agravante, ao menos até que a questão seja devidamente apreciada nos autos da ação originária, em um juízo de cognição exauriente.
2. De fato, ainda que em um juízo de cognição sumária, próprio do Agravo de Instrumento, verifica-se que há possibilidade de ser regularizada a área ocupada pela parte agravante, afigurando-se prudente, portanto, aguardar o curso da ação originária, a fim de que seja esclarecida tal questão. […] (Acórdão n.904545, 20150020200068AGI, Relator: NÍDIA CORRÊA LIMA 1ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 21/10/2015, Publicado no DJE: 23/11/2015. Pág.: 205)
[…] DEMOLIÇÃO DE EDIFICAÇÃO PRECÁRIA. SUSPENSÃO. IMÓVEL EM SETOR HABITACIONAL PASSÍVEL DE REGULARIZAÇÃO. 1. Há notícias de que a região em que está localizado o imóvel ocupado pelo agravante poderá ser regularizada em breve, de modo que se a construção ali erguida for demolida, tornará de nenhuma utilidade o provimento jurisdicional buscado na ação principal. 2. Verificando-se a possibilidade de ser regularizada a área ocupada pela parte agravante, é prudente manter a suspensão dos efeitos do auto de intimação demolitória até o julgamento da ação proposta contra a AGEFIS. […] (Acórdão n.845195, 20140020257245AGI, Relator: FÁTIMA RAFAEL 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 28/01/2015, Publicado no DJE: 06/02/2015. Pág.: 197)
[…] AGEFIS. INTIMAÇÃO DEMOLITÓRIA DO PODER PÚBLICO. INCABÍVEL. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. 1. É imprescindível que a lide seja analisada à luz dos valores constitucionais da função social da propriedade, conjugada com outros princípios constitucionais que se referem ao interesse público, de modo a alcançar a solução mais justa e adequada constitucionalmente. 2. A propriedade também está voltada para o atendimento do interesse social, o desenvolvimento do Estado e alcance do bem comum e deve ser vista sob a concepção social do Direito, a fim de que cumpra sua função social, conforme disposto na Constituição Federal/88 em seu art. 5º, inciso XXIII.[…] (Acórdão n.802171, 20130111590216APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisor: GISLENE PINHEIRO, 5ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 09/07/2014, Publicado no DJE: 21/07/2014. Pág.: 169)
No voto condutor do último acórdão citado – da lavra do Ilustre Desembargador Sebastião Coelho –, consta o seguinte:
Da análise dos autos, em especial dos documentos de fls. 32, 58 e 70, observa-se que cuida-se de área rural em que se discute a possibilidade de regularização. Portanto, não atende ao princípio da razoabilidade a demolição imediata dos referidos imóveis, existindo a possibilidade posterior de convalidação da permanência dos apelantes/autores.
Por conseguinte, nesses casos, a possibilidade de regularização da área – evidenciada, dentre outros fatores, pelo tempo de moradia dos interessados e pelo alcance de programas habitacionais do Governo – tem sido o principal critério utilizado pelo TJDFT, a fim de impedir injustas demolições intentadas pelo Poder Público.
Uma Possível Conclusão
Segundo o TJDFT, o morador de terra pública não é proprietário nem mesmo possuidor, mas, sim, mero detentor do aludido bem. Entretanto, curiosamente – nas hipóteses de ameaça ou efetiva turbação ou esbulho –, tal sujeito tem direito de manejar ação possessória em desfavor de outro particular.
Ainda conforme o referido tribunal, o particular detentor de terra pública não tem direito de mover ação possessória contra o Estado. Não obstante isso, por outros meios, pode proteger a própria moradia de injusta demolição/desocupação intentada pelo Poder Estatal, desde que habitante de área passível de regularização, haja vista o direito à moradia e a função social da propriedade, bem como os princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.